23.3.11

A crônica e o Conto

                                                         O Nariz                   

Crônica de Luís Fernando Veríssimo

            Era um dentista, respeitadíssimo. Com seus quarenta e poucos anos, uma filha quase na faculdade. Um homem sério, sóbrio, sem opiniões surpreendentes mas uma sólida reputação como profissional e cidadão. Um dia, apareceu em casa com um nariz postiço. Passado o susto, a mulher e a filha sorriram com fingida tolerância. Era um daqueles narizes de borracha com óculos de aros pretos, sombrancelhas e bigodes que fazem a pessoa ficar parecida com o Groucho Marx. Mas o nosso dentista não estava imitando o Groucho Marx. Sentou-se à mesa do almoço – sempre almoçava em casa – com a retidão costumeira, quieto e algo distraído. Mas com um nariz postiço.
- O que é isso? – perguntou a mulher depois da salada, sorrindo menos.
- Isso o quê?
- Esse nariz.
- Ah. Vi numa vitrina, entrei e comprei.
- Logo você, papai…
Depois do almoço, ele foi recostar-se no sofá da sala, como fazia todos os dias.
A mulher impacientou-se.
- Tire esse negócio.
- Por quê?
- Brincadeira tem hora.
- Mas isto não é brincadeira.
Sesteou com o nariz de borracha para o alto. Depois de meia hora, levantou-se e dirigiu-se para a porta. 
A mulher o interpelou.
- Aonde é que você vai?
- Como, aonde é que eu vou? Vou voltar para o consultório.
- Mas com esse nariz?
- Eu não compreendo você – disse ele, olhando-a com censura através dos aros sem lentes.
– Se fosse uma gravata nova você não diria nada. Só porque é um nariz…
- Pense nos vizinhos. Pense nos cliente.
Os clientes, realmente, não compreenderam o nariz de borracha. 
Deram risadas (“Logo o senhor, doutor…”) fizeram perguntas, mas terminaram a consulta intrigados e saíram do consultório com dúvidas.
- Ele enlouqueceu?
- Não sei – respondia a recepcionista, que trabalhava com ele há 15 anos. – Nunca vi ele assim. Naquela noite ele tomou seu chuveiro, como fazia sempre antes de dormir. Depois vestiu o pijama e o nariz postiço e foi se deitar.
- Você vai usar esse nariz na cama? – perguntou a mulher.
- Vou. Aliás, não vou mais tirar esse nariz.
- Mas, por quê?
- Por quê não?
Dormiu logo. A mulher passou metade da noite olhando para o nariz de borracha. De madrugada começou a chorar baixinho. Ele enlouquecera. Era isto. Tudo estava acabado. Uma carreira brilhante, uma reputação, um nome, uma família perfeita, tudo trocado por um nariz postiço.
- Papai…
- Sim, minha filha.
- Podemos conversar?
- Claro que podemos.
- É sobre esse nariz…
- O meu nariz outra vez? Mas vocês só pensam nisso?
- Papai, como é que nós não vamos pensar? De uma hora para outra um homem como você resolve andar de nariz postiço e não quer que ninguém note?
- O nariz é meu e vou continuar a usar.
- Mas, por que, papai? Você não se dá conta de que se transformou no palhaço do prédio? 
Eu não posso mais encarar os vizinhos, de vergonha. A mamãe não tem mais vida social.
- Não tem porque não quer…
- Como é que ela vai sair na rua com um homem de nariz postiço?
- Mas não sou “um homem”. Sou eu. O marido dela. O seu pai. Continuo o mesmo homem. 
Um nariz de borracha não faz nenhuma diferença.
- Se não faz nenhuma diferença, então por que usar?
- Se não faz diferença, porque não usar?
- Mas, mas…
- Minha filha…
- Chega! Não quero mais conversar. Você não é mais meu pai!
             A mulher e a filha saíram de casa. Ele perdeu todos os clientes. A recepcionista, que trabalhava com ele há 15 anos, pediu demissão. Não sabia o que esperar de um homem que usava nariz postiço. Evitava aproximar-se dele. 
Mandou o pedido de demissão pelo correio. Os amigos mais chegados, numa última tentativa de salvar sua reputação, o convenceram a consultar um psiquiatra.
- Você vai concordar – disse o psiquiatra, depois de concluir que não havia nada de errado com ele – que seu comportamento é um pouco estranho…
- Estranho é o comportamento dos outros! – disse ele. – Eu continuo o mesmo. Noventa e dois por cento de meu corpo continua o que era antes. Não mudei a maneira de vestir, nem de pensar, nem de me comportar, Continuo sendo um ótimo dentista, um bom marido, bom pai, contribuinte, sócio do Fluminense, tudo como era antes.
- Mas as pessoas repudiam todo o resto por causa deste nariz. Um simples nariz de borracha. 
Quer dizer que eu não sou eu, eu sou o meu nariz?
- É… – disse o psiquiatra. – Talvez você tenha razão…
O que é que você acha, leitor? Ele tem razão? Seja como for, não se entregou. Continua a usar nariz postiço. 
Porque agora não é mais uma questão de nariz. Agora é uma questão de princípios.


I _ CRÔNICA
           A crônica é um comentário leve e breve sobre algum fato do cotidiano é o único gênero literário produzido essencialmente para ser vinculado na imprensa, seja nas páginas de uma revista, seja nas de um jornal.
As características abaixo foram citadas por vários autores que tentaram entender a crônica enquanto estilo literário:
  • Ligada à vida cotidiana;
  • Narrativa informal, familiar, intimista;
  • Uso da oralidade na escrita: linguagem coloquial;
  • Sensibilidade no contato com a realidade;
  • Síntese;
  • Uso do fato como meio ou pretexto para o artista exercer seu estilo e criatividade;
  • Dose de lirismo;
  • Natureza ensaística;
  • Leveza;
  • Diz coisas sérias por meio de uma aparente conversa fiada;
  • Uso do humor;
  • Brevidade;
  • É um fato moderno: está sujeita à rápida transformação e à fugacidade da vida moderna.

      CONTO:                                      O DOUTOR GRILO
    ERA uma vez um camponês que tinha um filho muito ladino mas muito preguiçoso. De tanto viver deitado, sem nada fazer, irritou-se o pai e pô-lo para fora de casa. O rapaz, que se chamava João Grilo, foi parar a uma cidade.Nos arredores viu muitos cavalos amarrados aos postes, animais que traziam coisas para vender ao mercado da cidade. João Grilo escolheu o cavalo mais robusto, de samarrou-o e escondeu-o num bosque. Depois foi ao mercado e disse que vivia de adivinhar as coisas perdidas. Ninguém fez reparo do que dizia. Mais tarde, na hora em que a feira acabou, os homens foram voltar e um deles não encontrou o seu cavalo e debalde o procurou pelas cercanias. Cansado, lembrou-se de João Grilo e procurou-o. Respondeu o rapaz que só adivinhava por uma moeda de ouro. O homem aceitou e o Grilo deu umas voltas, pulando, falando baixo, e saiu às carreiras como doido. Voltou e disse que o cavalo estava no bosque, preso a uma arvore. O homem achou o animal e deu uma moeda de ouro ao adivinhão.
    Aconteceu que o Rei era muito rico e ciumento das jóias que possuía. Roubaram-lhe um anel, um dos mais bonitos e preciosos, e o rei ficou desesperado por não prender os ladrões. Soube que o Doutor Grilo morava na cidade e mandou-o buscar, de carruagem, para o palácio. O Doutor Grilo veio, quási preso, e certo de que era o fim de sua vida. Quando chegou, desceu da carruagem e levaram-no à presença do rei que lhe disse:
     Mandei-o chamar para que descubra onde está o meu anel que roubaram. E’ anel de estimar tão e valia. Dou-lhe três dias para o achamento» ne o encontrar, ganhará uma bolsa de ouro, e se não o descobrir, ganha a forca. Fique avisado.
    O Doutor Grilo ficou muito aflito. Meteram-no em um quarto muito grande e bonito e traziam-lhe comida variada. O rapaz só se lembrava de que tinha de ser enforcado ao fim do terceiro dia. Quando trouxeram os pratos do jantar, o Doutor Grilo foi comendo e dizendo: cá está o primeiro…
    O criado ficou todo assustado e retirou-se. Era um dos ladrões do anel, ajudado por outros dois criados da copa. No jantar do segundo dia o Doutor Grilo suspirou, dizendo bem alto: cá está o segundo. Só falta o último…
    O segundo criado, cheio de terror, correu a avisar os cúmplices do que sucedera. O Doutor Grilo adivinhara tudo e era melhor um acordo. Vieram os três, confessaram o furto, prometendo uma bolsa de ouro se o rei não fosse informado.
     Onde está o anel? perguntou o Grilo; onde o esconderam?
    Os ladrões o foram buscar e deram ao rapaz, que o meteu debaixo de uma tábua solta do soalho no corredor.
    Pela manhã, pediu para ver o rei e foi logo dizendo onde estava o anel. O rei ficou radiante mas, como era muito avarento, quis experimentar
     Diga-me lá o que é que tem cá dentro? O rapaz, todo atrapalhado, respondeu, muito triste:
     Ah Grilo! Onde te meteram!…
    O rei desatou a rir, dizendo: — Acertou!
    Dentro da terrina estava um grilo.
    Deu-lhe uma bolsa cheia de ouro e mandou-o embora na carruagem. O rapaz ainda recebeu ou tra bolsa dos três criados e foi para a companhia do pai já rico, não querendo mais fiar-se nas adi vinhações.
    Fonte: Os melhores contos Populares de Portugal. Org. de Câmara Cascudo. Dois Mundos Editora.
                       
    II- CONTO
             Conto é a designação que damos à forma narrativa de menor extensão e que se diferencia do romance e da novela não só pelo seu tamanho, mas também por possuir características estruturais próprias. Ele possui os mesmos componentes do romance, mas evita análises, complicações do enredo e o tempo e o espaço são muito bem delimitados. O conto é uma narrativa linear, que não se aprofunda no estudo da psicologia das personagens nem nas motivações de suas ações. O conto é uma narrativa breve; desenrolando um só incidente predominante e um só personagem principal, contém um só assunto cujos detalhes são tão comprimidos e o conjunto do tratamento tão organizado, que produzem uma só impressão
    Do que precisa o conto?
    Tensão, ritmo, o imprevisto dentro dos parâmetros previstos, unidade, compactação, concisão, conflito, início meio e fim; o passado e o futuro têm significado menor. O flashback pode acontecer, mas só se absolutamente necessário, mesmo assim da forma mais curta possível.




                       


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